para Beto Alma

 

 

Numa ensolarada tarde de Abril, com sua luz suave de outono banhando pacificamente o mobiliário, sentado na biblioteca do Sítio Pedra Grande, deixando-me impregnar pelo silêncio profundo e perfumado que vem das montanhas da Mantiqueira ao redor, encontrei-me com este finalzinho de parágrafo de Michel de Montaigne, trecho de seus volumosos Ensaios, datados de 1580, escritos na torre cilíndrica que abrigou sua biblioteca, que também lhe serviu de aposento e refúgio, no castelo de sua propriedade na região francesa do Périgord, para onde se retirou da vida pública quando tinha 34 anos a fim de estudar e escrever:

Recebendo nossa razão e nossa alma as ideias e os sentimentos que nascem em nós enquanto dormimos, e prestando-se a eles, como o faz com o que concebemos de dia, como duvidar de que, em pensando e agindo, sonhamos? E estar acordado seja uma forma particular do sono? (Livro II, capítulo XII)

Rapidamente lembrei-me de tantas afirmações de James Hillman que, indo exatamente na mesma direção quatro séculos mais tarde, dizem praticamente a mesma coisa: o sonho antes da realidade. Há, na psicologia pós-moderna-junguiana de Hillman, a mesma visão das palavras de Montaigne, visão que também pode ser enunciada como “imaginação é realidade”. Ou ainda como “a vida ė sonho”, de Calderón de la Barca. Ou como “a psique cria realidade todos os dias”, de Jung. Ou ainda como “todas as nossas faculdades são permeáveis ao sonho”, de Gaston Bachelard.

Imerso na inteligência desses sábios montanheses, eu mesmo, naquele exato momento, habitante sincero das montanhas de São Francisco Xavier que entravam triunfantes pelas janelas da minha biblioteca naquela tarde, deparei-me uma vez mais com a sempre misteriosa sabedoria profunda das palavras: Montaigne, o Michel Eyquem da montaigne, e Hillman, o hill man James, ambos homens da montanha. Hillman, o homem da montanha, e Montaigne, o homem-montanha. Será a montanha uma espécie de pensador?

 

 

—maio/2017