Em 1987, ano em que se comemorava o 25.° aniversário da morte de C. G. Jung, na Conferência “Presente e Herança Cultural” em Milão, no Centro Italiano di Psicologia Analitica, James Hillman apresentou uma reflexão sobre o velho mestre na qual, entre outras coisas tão interessantes que disse tentando ao mesmo tempo absorver, compreender e processar a grande figura de nosso ancestral mais direto, afirmava que a terapia que Jung nos havia deixado colocaria o indivíduo engajado nos atos da luta diária “levemente em desacordo (slightly at odds) com a luta diária, deslocando o usual, libertando a imagem cativa e aliviando o sofrimento de Sofia na matéria” (Hillman, 1988: 18). O texto dessa reflexão foi publicado em 1988, no primeiro número da extinta revista inglesa de psicologia arquetípica e arte Sphinx (editada durante alguns anos por Noel Cob e Eva Loewe), e é fundamental para se compreender o modo como Hillman compreendia Jung. Acredito que essa imagem fala hoje ainda mais precisamente da terapia que o próprio Hillman nos deixa como legado, que já foi também chamada de “terapia focada na imagem”. A psicologia arquetípica coloca a nós como pacientes, e a própria psicologia como um campo investigativo, numa posição essencialmente crítica, levemente em conflito constante com tudo o que está dado cotidianamente, formando indivíduos “levemente” desencaixados, “levemente desencaixotados”. O “levemente” na expressão sempre me pareceu interessante.

Um primeiro aspecto dessa “terapia de James Hillman” é, sem dúvida, a terapia das ideias. Como fizeram com muita gente, as ideias de James Hillman modificaram minha maneira de entender a psicologia e, especialmente, de praticar a psicoterapia. Hillman mudou nosso jeito de pensar e de levar adiante a psicologia junguiana. Mudou a própria definição de junguiano. Seu pensamento extrapola em muito a psicologia, embora parta dela e brigue com ela e, paradoxalmente, mantenha-se sempre apaixonadamente fiel a ela. Sua obra encarna uma espécie extraordinária de conjunção de velho e novo, de tradição e renovação. Ou seja, Hillman junta em si mesmo os arquétipos de senex e puer.

Ao longo dos anos de trabalho, o puer parece ter sido, se não o principal, certamente o mais contundente tema em sua obra. Nela, esse arquétipo não se apresenta cindido (como o próprio Hillman denuncia que acontece na cultura), mas forma um todo coeso, ainda que aberto. Sua obra é um belo exemplo de puro espírito revolucionário fortemente aliado a uma erudição de fato excepcional e à tradição sólida que suas fontes revelam. Em seus textos, experimentamos os ventos frescos da renovação radical de ideias já estabelecidas (o que pode ser muito perturbador) e, simultaneamente, em suas numerosas notas constantemente acrescentadas ao longo de seus livros, a âncora firme que referencia a reflexão na tradição e que só faz ampliar a argumentação e o entendimento. Quem se envolve com o puer envolve-se necessariamente com o senex e, em seguida, com alma. Como poucos, Hillman generosamente abre suas fontes nessas inúmeras notas, sem medo de apontar caminhos percorridos, levando o leitor que assim o desejar a mais estudo, mais discussão e mais aprofundamento: em seu texto, todos os caminhos estão à mostra. Hillman propõe uma psicologia intelectual, ainda que não acadêmica, uma psicologia que atende ao anseio da alma por logos.

A renovação, o melhor espírito da renovatio, está na base do impulso que gera, em meio às ideias que apresenta, um renascimento da psicologia. Está na base do impulso arquetípico que deseja, diga-se, “re-ver a psicologia”. A terapia das ideias é essa: desconstruir e reconstruir as ideias com que montamos nossos pensamentos, de maneira a liberá-los para um modo mais imaginativo, menos conceitual. Esse modo mais imaginativo em psicologia começa com Jung e é parte de seu legado, pois, como sabemos, ele personificava seus conceitos, imaginava suas principais ideias psicológicas articuladas como pessoas. Mas com Hillman isso realiza uma terapia na própria psicologia no sentido de desconstruir seus conceitos ou, para citar Thomas Moore, de lembrar à psicologia de que ela “não é uma ciência ou uma filosofia moral ou mesmo uma disciplina espiritual… mas uma atividade imaginativa da alma” (Moore, em Hillman, 1989: 16).

Alguém já disse que James Hillman faz da psicologia o braço investigativo da poesia. Essa percepção está em cada palavra sua tornada insight psicológico, carregando a imaginação da sabedoria profunda por meio de uma linguagem ativada, viva. A própria linguagem quer perceber e espelhar a consciência criante da psique. Hillman, além de um teórico extraordinário, é também um escritor, um artista das palavras, intensamente preocupado com a linguagem que carrega seus insights, intensamente imbuído, digamos, do valor terapêutico da linguagem, a cura pela fala.

Portanto, a importância e o valor de seu pensamento não podem ser avaliados completamente sem que se tenha em mente a revolução no plano das ideias psicológicas que ele inaugurou, trazendo de volta os valores renascentistas de que somos hoje tão carentes. Na minha opinião, essa revolução está sobretudo presente na concepção de alma que ele carrega e defende. Essa concepção reconhece a alma como uma potência múltipla, “abrindo assim caminho para uma fenomenologia radical da psique como um campo autônomo de personificações múltiplas” (Hillman, 1988: 11), para citar agora outra observação de Hillman, naquele mesmo texto, com relação ao método e à terapia de Jung que também se encaixa, a meu ver, tão perfeitamente com a sua. O interessante é que, nessa articulação, essa potência pode ser acessada, apreciada e cultivada por um público que vai, inclusive, muito além dos psicoterapeutas profissionais. Artistas, escritores, profissionais da saúde, psicanalistas, professores, ambientalistas, teólogos, filósofos, historiadores e cientistas sociais estão entre aqueles que podem ampliar significativamente os horizontes de suas reflexões e práticas. Para Hillman, essa potência caracteriza-se mais fundamentalmente por um desejo de conhecer-se ou compreender-se a si mesma, o que está na base da construção de todas as suas manifestações, da arte ao sintoma. Veja-se essa passagem, colhida de uma página de seu Psicologia arquetípica: um breve relato:

 

O desejo da alma, aquele que guia seu trabalho, parece ser, pois, o de conhecer-se e refletir-se nas imagens que a constituem. Ela age ao modo de metáfora: transpõe o significado e liberta o sentido interior dos eventos. Movimento envolto em uma luz escura (Hillman, 1981: 47).

 

Em sua obra escrita, os temas vão e voltam, como na música. Não estão imaginados de forma linear, e, na verdade, podemos começar a leitura de Hillman por qualquer um dos livros, assim como acontece, a meu ver, também com a obra de Jung. O caminho é circular e há múltiplas entradas. Mas é mesmo na metáfora óptica que alcançamos a melhor compreensão de seu pensamento. A imaginação teórica de Hillman é mais visual, digamos, do que tátil ou auditiva. Suas metáforas são principalmente ópticas: ver, re-ver, olhar, enxergar através, considerar, contemplar, admirar. Esse pensamento envolve sempre olhar novamente seus temas, uma visão em perspectiva (Lembremos que “o olhar da Renascença chama-se perspectiva” [Bosi, 2002: 74]). Sua leitura abre os olhos e, assim, também a mente e o coração. Entendo que essa ênfase no olhar também faz parte de sua “terapia”, pois, para lembrar o que uma vez disse Alfredo Bosi sobre o olhar: “Olhar não é apenas dirigir os olhos para perceber o ‘real’ fora de nós. É, tantas vezes, sinônimo de cuidar, zelar, guardar, ações que trazem o outro para a esfera dos cuidados do sujeito” (Bosi, 2002: 78). Nada mais pertinente a um terapeuta.

As metáforas são ópticas, mas a retórica, insisto, é a do desacordo. Re-vendo a psicologia é um grande livro do “Não”, como se ele o tempo todo estivesse dizendo: não é isso! ainda não é isso! Seu trabalho já foi chamado de uma “contra-educação”, pois desloca a mente das convicções usuais. É uma psicologia subversiva, em vários sentidos, pois subverte aquilo que usualmente pensamos, nossas convicções psicológicas habituais, e também por ser a “versão de baixo”, a “sub-versão”, uma versão da psicologia a partir do ponto de vista de baixo, dos inferiores, do mundo das trevas, lá embaixo bem onde está a alma.

Meu primeiro contato com essa “terapia das ideias” foi a leitura, em 1985, durante o mestrado na New School for Social Research de Nova York, dessa sua já clássica apresentação da psicologia arquetípica, o livro Re-vendo a psicologia. Como aconteceu com muita gente, essa leitura foi um assombro, e um profundo encontro com uma psicologia da alma. Os quatro verbos que são títulos de cada capítulo desse livro — “Personificar”, “Patologizar”, “Psicologizar” e “Desumanizar” —, ao traduzirem e indicarem quatro ações, sugerem, na verdade, quatro modos mais evidentes de um percurso para o cultivo da alma (soul making) em nossas vidas. A ideia aqui é relativamente simples: uma vez engajados neles, em cada um ou em todos ao mesmo tempo, um sentido de alma, ou seja, de aprofundamento significativo em nós mesmos e no mundo, aumenta. Sentimos, por assim dizer, a realidade psíquica como uma experiência viva. Essa experiência envolve-nos necessariamente com o mito e as fontes arquetípicas da existência. Para bom junguiano, é o que basta.

Mas um outro aspecto da “terapia de James Hillman” que para nós no Brasil interessa muito é a metáfora do “sul” e o que ele fez com ela, abrindo caminhos teóricos e imaginais novos e importantes. Veja-se, para começo de conversa, este trecho:

 

Devido ao fato da nossa cultura trazer como bagagem a oposição entre monoteísmo e politeísmo, ela está profundamente arraigada no inconsciente coletivo de cada um de nós. O que quer que digamos, o que quer que escrevamos, está tão carregado de suposições monoteístas, que uma compreensão da psique politeísta é quase impossível (Hillman, 1981: 128).

 

Com esta afirmação, James Hillman provoca-nos a fazer um esforço, portanto, rumo ao impossível: entender a psique politeísta dentro da mente monoteísta. Não pretendo entrar aqui na delicada discussão sobre a importância do politeísmo para a psicologia. Essa questão psicológica, que tanto impacto teve e pode ainda ter na vontade de movimentar a psicologia, já está amplamente refletida ao longo do melhor de sua obra. O artigo “Psicologia: Monoteísta ou Politeísta?”, de 1981, do qual esta afirmação foi retirada, talvez seja o ponto de referência, e o momento em que ele mais se aprofundou no assunto.

Escrevi e procurei refletir sobre a metáfora do “sul” e como ela atende à perspectiva particular que podemos imaginar no Brasil com relação às questões fundamentais da psicologia e da arte da psicoterapia. Pois foi James Hillman quem nos ajudou a enxergar através dessa metáfora e a pensar o “sul” como um atributo imaginal na alma do mundo. Ele nos deu a “direção ao sul” em psicologia, e foi o primeiro a nos fazer ver a riqueza e o eros dessa conexão entre o sul e a alma. Isso, devemos a ele.

No Brasil, é claro, somos levados a enxergar o “sul” ainda como uma grande e poderosa metáfora para a psicologia profunda. Não podemos escapar do sentimento do “sul”, dentro do qual nascemos. Portanto, precisamos refletir sobre ele, ou seja, criar sempre novas imagens. Embora ainda estejamos possivelmente presos neles, o mitologema “Novo”, por exemplo — como em Novo Mundo, nova terra, novo continente —, tanto quanto o mitologema “Antártico” (do latim antarticu) não parecem mais suficientes, não mais falam à alma; ou será que algum dia falaram? “Novo”, a ideia de novidade, é a “prisão das Américas” (Hillman, 1998: 19), como apontou Hillman na única ocasião em que falou da América do Sul, o artigo “Culture and the Animal Soul”; e “Antártico” — não Ártico, antiártico, antinorte, oposto ao polo Ártico — é, claro, a retórica da negação. Assim, o mitologema “Sul”, além de ser mais afirmativo, talvez possa ter ainda mais o que dizer sobre a alma.

A psicologia arquetípica trouxe de volta essa metáfora, o “Sul”, para dar um grande passo teórico. Esse passo tem a ver com a virada do eixo Leste-Oeste num eixo Norte-Sul, o que significou para a psicologia junguiana que não mais precisávamos ir para o Oriente para irmos fundo, para nos aprofundarmos. Ao mexer exatamente nesse eixo, a psicologia arquetípica contribuiu para nos conscientizarmos ainda mais de que aquilo que formulamos como psicologia, diz Hillman, “emergiu do Protestantismo da Europa Ocidental Setentrional e sua extensão a oeste na América do Norte” (Hillman, 2010: 414), e de que precisávamos nos dirigir para o sul da cultura mediterrânea, para os mitos clássicos, a fim de re-encontrarmos alma, beleza e pathos.

Todos sabemos do significado e do poder da metáfora do sul: ela é verdadeiramente arquetípica. Desde Freud e os primeiros dias da psicanálise, foi como imaginamos uma direção rumo ao inconsciente, rumo à alma: a direção vertical. Para encontrarmos alma, vamos para baixo: memórias pessoais, infância, mitologemas antigos, complexos, realidade arquetípica — tudo isso imaginado como depositado dentro, no fundo, embaixo, no “sul” de nós mesmos. O verdadeiro caráter é também imaginado dentro e no fundo de nossos atos. E, não devemos nos esquecer, esse “sul” também representa a parte baixa do corpo.

De uma página em seu famoso artigo de 1982, “Anima Mundi: o retorno da alma ao mundo”, quero lembrar agora este parágrafo:

 

Despertar o coração imaginativo e sensitivo deslocaria a psicologia de uma reflexão mental em direção a um reflexo estimulante. A psicologia pode então vir a ser florentina novamente, pois o movimento “em direção ao sul” sobre o qual venho insistindo nesses últimos vinte anos — desde as clínicas de Zurique e Viena, dos laboratórios brancos e florestas negras da Alemanha, das dissecações positivistas e empiristas da Grã-Bretanha e Estados Unidos, isso sem mencionar a ginástica da língua francesa — não pode ser consumado sem movimentar também o centro da alma: do cérebro para o coração; e o método da psicologia da compreensão cognitiva à sensibilidade estética (Hillman, 2010a: 95).

 

Mas nós aqui no Sul conhecemos também as projeções obscuras que desembarcaram abaixo do Equador: o sul-tropical como irracional, sexualmente livre, dionisíaco, pagão, perverso, atado arquetipicamente à Mãe em razão de um apelo extravagante e extraordinário da natureza e do clima, instintivo, preguiçoso, canibal. Aquilo que foi a princípio percebido pelos conquistadores como edênico, numa projeção paradisíaca, logo virou num projeto infernal de roubar, usurpar e abusar terra e gente nos Trópicos — corrida do ouro, tráfico de madeira, escravidão, mutilação de alma.

No Brasil estamos muito conscientes disso tudo, pois nós também começamos no “sul”. Minha impressão é que, para além da cultura mediterrânea, a “terapia de James Hillman” permite que esse “sul” arquetípico possa ser re-imaginado. A cultura brasileira sincrética e politeísta brilha na América do Sul e, em si mesma, continua a oferecer um desafio para a psicologia arquetípica no que concerne ao “sul” como uma localização cultural, étnica, ética e imaginal, uma região da alma, da fantasia, para além do que ela já reconheceu como “sul”. Estou tentando sugerir que, para além do que Hillman nos mostrou sobre a psicologia da cultura clássica mediterrânea e dos valores renascentistas, as culturas abaixo do Equador (tal como a brasileira) podem ajudar a continuar imaginando até mesmo mais radicalmente nossa fundamental direção metafórica nas ideias e na pesquisa, num movimento ainda mais radical em direção às características receptivas e fecundas da alma. Isso, para nós, funciona terapeuticamente.

Uma forma de imaginar o “sul” é certamente entendê-lo como um resultado da miscigenação das três raças absolutamente diferentes que se combinaram originalmente para formar o povo brasileiro: o índio sul-americano, o europeu português e o escravo africano. Alquimia: coniunctio como solutio. Miscigenação. E fica claro para mim que a miscigenação é a principal contribuição para a psicologia que emerge do Brasil. Ela ainda está para ser compreendida também psicologicamente. Ela representa um estilo totalmente diferente de consciência, mais inclusivo e receptivo, menos abstrato e conceitual, ainda que também triste e melancólico. Para a psicologoia, acredito ser a chance de avançar naquilo que Hillman refere-se como “supremacia branca” (Hillman, 1986): psicologia do ego, empiricismo, subjetivismo, espiritualismo. A miscigenação representa uma verdadeira “descida ao sul”.

Ainda um outro aspecto dessa “terapia de Hillman”, com o que quero terminar, aspecto que se junta às observações com que iniciei em torno de uma consciência “levemente em desacordo”, é o que me faz entreter a ideia de um “ego poroso”. Isso, na esteira da “prosa porosa” (ventilated prose) com que sonhou Augusto de Campos, nosso anticrítico por excelência, também ele “em desacordo”, na esteira ele das indicações de uma “prosa ventilada” de Buckminster Fuller. É uma prosa permeada de poesia.

Se o ego está para a alma como a prosa está para a poesia, talvez possamos enxergar nessa terapia a imagem de um “ego poroso”. A ideia de um “ego poroso” traduz uma consciência que deixa sua porta entreaberta. Para essa consciência, tudo é poroso, tudo oferece aberturas, possibilidades, entradas, vãos, duplicidades. É uma consciência infundida pelo puer, modelo de uma

 

consciência urdida na terapia, consciência dupla, “kairótica”, em dois tempos, que abre fendas no tempo minimizando assim seu literalismo aprisionante e adoecido. Entendo que para Hillman, voltando agora a este arquétipo tão importante a meu ver em sua “terapia”, a iniciação ao puer tem o caráter de uma conscientização de que a individualidade não é essencialmente unidade mas duplicidade, e que nosso ser é metafórico, sempre em dois níveis ao mesmo tempo. Só esta verdade dupla, gloria duplex, pode oferecer proteção contra o naufrágio ensinando-nos a não afundar entre as imensas rochas monolíticas das realidades literais. (…) Onde quer que se esteja, há sempre um “outro” em que nossa existência se reflete, e devido a quem somos sempre “mais”, “diferentes” e além daquilo que se é aqui e agora (Hillman, 1999: 198).

 

Nesse sentido, tenho para mim que, em sua obra, o Livro do puer é o ponto mais indicado para se adentrar na “terapia de James Hillman”. Ali, a individuação não é a cura da divisão, mas a consciência da divisão. Lembremos Jung: “A individuação é o tornar-se aquilo que não é o ego… aquilo que você não é… Você se sente como se fosse um estranho” (Jung, 1999: 39). Isso nos coloca diante de um certo radicalismo sem o qual não se faz o movimento da individuação, e esse radicalismo cresce com a terapia. Esse radicalismo “começa na não adaptação, aquele não conformismo ou anormalidade da idiossincrasia” (Hillman, 1988: 13). Em outras palavras, a cura da divisão é a consciência da própria divisão, um “sentido de duplicidade”, como ele diz, tornando-nos não indivíduos divididos, mas indivíduos duvidosos. Esses indivíduos duvidosos estarão sempre levemente em desacordo, levemente em conflito com tudo ao redor.

Como disse Flaubert, a imbecilidade consiste em querer concluir. Não quero concluir nada. Estamos aqui para celebrar James Hillman, e quero fazê-lo com o abandono carinhoso que devemos dedicar a quem tanto nos ensinou. Pois nem quero ou posso evitar sua sombra — e por “sombra” refiro-me aqui mais à sua influência que ao conceito junguiano. Estou aqui para celebrá-lo e pagar-lhe tributo como terapeuta extraordinário, nos escritos, na obra, na presença. Por isso vim brincando com essas “terapias de James Hillman”, querendo dizer que a minha fantasia de aproximação a James Hillman, minha fantasia de James Hillman, foi sempre a de um terapeuta. Terapia aqui como o impacto que ele tem sobre nós, a palpitação que salta de cada página sua, o modo como ele nos move.

Bachelard, o profeta da Champagne, o arauto da imaginação, dizia de si que ele era um psicólogo dos livros. James Hillman é um psicólogo da psicologia. Celebrá-lo é, em grande medida, festejar a psicologia, a vitalidade de uma psicologia.

 

 

Referências Bibliográficas

 

BOSI, Alfredo (2002). “Fenomenologia do Olhar”, em O olhar, org. Adauto Novaes. São Paulo: Companhia das Letras.

HILLMAN, James (1981). “Psychology: Monotheistic or Polytheistic”, apêndice a MILLER, David. The new polytheism. Dallas, TX: Spring Publications.

——— (1986). “Notes on White Supremacy: Essaying an Archetypal Account of Historical Events.” Spring 1986. Dallas, TX: Spring Publications.

——— (1988). “Jung’s Daimonic Inheritance”, em Sphinx: Journal for Archetypal Psychology and the Arts, volume 1, Londres: The London Convivium for Archetypal Studies.

——— (1989). A blue fire: selected writings by James Hillman. Introdução e edição de Thomas Moore. Nova York, NY: Harper Perennial.

——— (1991). Psicologia arquetípica: um breve relato. Tradução de Lucia Rosenberg e Gustavo Barcellos. São Paulo: Editora Cultrix.

——— (1998). “Culture and the Animal Soul”, em Spring 62. Woodstock, Connecticut: Spring Publications.

——— (1999). O livro do puer – ensaios sobre o arquétipo do puer aeternus. Edição e tradução de Gustavo Barcellos. São Paulo: Paulus Editora.

——— (2010). Re-vendo a psicologia. Tradução de Gustavo Barcellos. Petrópolis: Editora Vozes.

——— (2010a). O pensamento do coração e a alma do mundo. Tradução de Gustavo Barcellos. Campinas, SP: Verus Editora.

JUNG, C. G. (1999). The psychology of Kundalini Yoga: notes of the seminar given in 1932, ed. Sonu Shamdasani, Princeton: Princeton University Press.