Foto por: Rodrigo Gouvea

Pois de tudo fica um pouco.
—“Resíduo”, Carlos Drummond de Andrade

Do ponto de vista do planeta, não existe lixo, não existe “jogar algo fora”. Hoje, vivemos as diferenças entre reciclagem, reuso e reaproveitamento, que é também a diferença entre lixo e resíduo. Lixo é o que não serve. Resíduo é a sobra reaproveitável de algum processo. Do ponto de vista ambiental, não dá para falar em lixo: tudo serve, tudo se transforma.

Mas, o que é o lixo do ponto de vista psicológico? Se “de tudo fica um pouco”, o que fazer com nossos resíduos emocionais? Onde colocá-los? Esse lixo, ainda que seja aquilo que você despreza ou rejeita de suas experiências emocionais, não pode ser confundido com as noções de sombra da psicologia junguiana. Se entendemos os resíduos como sobras (não sombras) de processos vitais, o que fazer então, por exemplo, com o resíduo de uma relação malograda, de um casamento terminado, da briga entre sócios ou entre irmãos, de um amor antigo, ou impossível, de um projeto já realizado, de um desejo proibido, de uma viagem terminada, de uma carreira abandonada, de frases malditas, ou mau ouvidas, de toda uma vida bem ou mau vivida, de estoques e pilhas de lembranças, as piores lembranças de infância que, de repente, voltam num fragmento de sonho? Sobras. Se não trabalhamos mais com a noção de lixo, e nem com a de sombra, de que forma entender como re-aproveitáveis essas sobras, as sobras dessas experiências? E mais: como re-aproveitá-las? Para onde encaminhá-las? Que processos psíquicos estão envolvidos na reciclagem? No reuso? No descarte?

O próprio fazer alma (soul making), como todo fazer, como toda arte ou atividade, produz resíduos. O que a educação ambiental pode nos ensinar sobre a terapia da psique, e como pode ela influenciar uma educação psicológica?

Parece haver em nossa época pelo menos duas fantasias predominantes por dentro de nossos comportamentos habituais: a fantasia de voo (fantasia ascensional, para cima, de destaque do mundo, espiritualizante), e a fantasia de limpeza (também espiritual, de distanciamento). A questão do lixo, dentro e fora de nós, tem, a meu ver, conexão direta com ambas: numa, estamos indo para fora do mundo sujo (mau), noutra, estamos limpando o mundo mau (sujo).

Quem inventou o lixo foi René Descartes, dizia James Hillman, ao declarar o mundo morto, lugar de coisas sem vida, descartável, não importante, sem alma. Lixo ordinário, lixo do nosso dia-a-dia, lixo de cada dia, todo o dia.     Na psicologia profunda, o lixo entrou de primeira, já com Freud e seu trabalho que entende que os sonhos, a matéria onírica propriamente dita, e suas fantasias inconscientes, são feitos de restos, dos tais “resíduos do dia” (Tagesreste), do que sobrou e não tem destino a não ser a alma. O inconsciente como lata de lixo. Somos feitos da matéria dos sonhos e, para Freud, a matéria dos sonhos é lixo.

O lixo é um eixo. É um tema tão desagradável, é tão incômodo, quem é que gosta de falar em sobras, restos, escombros, entulhos, detritos, dejetos, rejeitos, refugos, vexames, pesadelos, pecados, erros, fracassos? Que imenso universo nas trevas! Que imenso universo linguístico!

Lixos são também fracassos, o fracasso é como o lixo. Nossos fracassos não nos exoneram, não desistem de nós. São como nossos complexos, permanecendo conosco além do que gostaríamos, formando um lixo que, sem a possibilidade do descarte, devemos reciclar. Os fracassos são como o lixo, inconvenientes. Não sabemos o que fazer com eles, nem mesmo onde colocá-los, como aceitá-los.

Na psicologia do lixo, a categoria das sobras, dos restos, é diferente da categoria do resíduo. Produzem eventos com destinos diferentes. Esses são eixos da matéria psíquica, e nos deixam entrever níveis em que a alma opera sua psicanálise, seu balanço, seu aprofundamento natural.

Nesse contexto, a perspectiva do reaproveitamento é certamente a perspectiva do renascimento. Ao falarmos em renascimento, estamos em terreno arquetípico. Lembramos C. G. Jung e seu trabalho com a psicologia desse arquétipo, no ensaio “Sobre o renascimento”, de 1939, onde ele destaca “formas” de renascimento: metempsicose, reencarnação, ressurreição (resurrectio) e renascimento (renovatio). Lembramos também da importância da sílaba ‘re’, que quase sempre nos envolve com as ações próprias e primárias da psicologia. Com ela, fazemos psicoterapia, como mostrou James Hillman em passagens do livro Entre Vistas, que re-lembramos sempre: “o que importa é a pequena sílaba ‘re’ — é a sílaba mais importante na psicologia: relembrar, retornar, rever, refletir.”[1] Pois mais uma vez queremos fazer alma com ela, agora com as noções mais modernas (ou nem tanto) de reaproveitamento, reúso, reciclagem, remontagem.

 

Resíduos

Todo ser vivo gera lixo. Estamos sempre gerando algum tipo de lixo, de sobra, de resto ou resíduo em tudo que fazemos. Fazer é também (fazer) sobrar. Sobras se acumulam, restos permanecem, resíduos proliferam num mundo inconsciente. O lixo é um problema constante.

Lixo por toda parte. Resíduos químicos, resíduos orgânicos, resíduos líquidos, resíduos sólidos, industriais, tecnológicos e de saúde. Resíduos pastosos, plásticos, alimentícios, resíduos de construção civil, entulho. Lâmpadas fluorescentes, pilhas, baterias, tonners, sucatas de informática e telefonia — o assim chamado e-waste, lixo eletrônico, gerado pelo descarte de televisores, aparelhos de ar condicionado, computadores, monitores, celulares e outros aparelhos que contêm substâncias poluentes que oferecem risco à saúde humana, como o chumbo, o mercúrio, o berílio e o cádmio. Fios, cabos, pneus e toda a linha branca. Excedentes de fabricação, estoques antigos. Tudo isso vai fora, vence, quebra, apodrece, extingue-se, acaba. Vai para o lixo. Estoques vencidos, perecíveis vencidos. Borras de tinta, óleos, estopas contaminadas, instrumentação. Resíduos infectantes de hospitais, farmácias e consultórios dentários. Cemitérios de automóveis, ferros-velhos, sucatas.

Lixo espacial, novo e desconcertante: satélites usados, cascos de foguetes, pedaços de equipamentos. Um pedaço descartado do foguete que levou o Sputnik 1, o primeiro satélite artificial, em 1957, à órbita da Terra tornou-se o primeiro detrito produzido por nós no espaço sideral, e quase todas as missões subsequentes adicionaram mais lixo espacial em nosso quintal cósmico, um enxame, um vexame. E esse lixo varia de fragmentos do tamanho de uma maçã até motores enormes de foguetes, de parafusos perdidos até manchas de tinta. Lixo biológico, o assim chamado DNA-lixo: uma rápida busca de informações pela internet nos conta que o DNA-Lixo é a parte do DNA que não participa da formação de proteínas e tem uma função “desconhecida”. Acredita-se que o DNA-Lixo relaciona-se a mutações inócuas ou partes de vírus que tenham se incorporado ao genoma. Lixo puro, lixo dentro de nós, lixo parte de nós.

E ainda mais: no final de tudo, nós mesmos como lixo, o último dos lixos e das sobras — nossos restos mortais: isso nosso que é osso, e que fica, sobra, resta, permanece, dura.

Lixo por toda parte. Lixo seco e lixo úmido. Como encaminhar isso tudo? Como fazer e manter contato com isso tudo? Como criar e manter uma consciência do lixo?

Há também todo o universo dos “usados” e dos “seminovos”: podem ser carros, livros, roupas; podem estar nos brechós, bric-a-bracs, lojinhas, pontas de estoque, revendas, mercado de pulgas, lojas de antiguidades. Aqui temos tudo aquilo que sobra e que se mistura. Nesses ambientes, a mente trabalha, neles ela imagina: misturas, renovações,  revoluções, novas abordagens. São ambientes de lançamento. São portanto importantes para aprendermos a lidar com nossas vidas. Esses ambientes são lições de moral.

Para tudo isso, todo esse lixo, imagina-se uma destinação final. Há países que vendem, e há os que compram lixo. Esse é um negócio que movimenta bilhões de dólares e envolve desde empresas lícitas até o crime organizado. A destinação final do lixo pode ser o descarte com sistemas de incineração (fornalha ou fornos de micro-ondas), auto-clave, aterros sanitários ou aterros controlados e co-processamento, e ainda os lixões ou vazadouros a céu aberto. Reciclar, reaproveitar, descartar, incinerar, enterrar, exportar o lixo: cada uma dessas alternativas expõe valores, escolhas, modos de vida. Expõe psiquismos itinerantes. Cada uma dessas possibilidades significa pensar e repensar os caminhos de transformação dos resíduos. Aqui entram finalmente os 3 R’s do lixo, que resumem as três metas da Política Nacional de Resíduos Sólidos no Brasil: redução, reutilização e reciclagem. Redução do consumo, reutilização de produtos, reciclagem de materiais. Do ponto de vista do lixo, menos é mais. O lixo é mais alma.

Tudo isso é também muito psicológico. Precisamos enxergar nossos rituais cotidianos de deposição-descarte, coleta-recuperação e reciclagem-reuso também de um ponto de vista psicológico. O que fazemos no mundo é o que fazemos conosco.

Reciclar, o mais celebrado desses rituais, significa submeter algo à reciclagem, ou seja, a uma série de processos de mudança ou tratamento para reutilização. Processar para que se possa reutilizar. Uma definição standard de reciclagem diz: “São considerados recicláveis aqueles resíduos que constituem interesse de transformação, que têm mercado ou operação que viabiliza sua transformação industrial.” Mas reciclar significa, sobretudo, colocar de novo no ciclo, devolver ao ciclo. Por de volta, voltar a circular, devolver para a circulação. Não parar. O objetivo é evitar o encaminhamento dos resíduos para o lixo. O lixo é a parada. A parada do lixo é um tipo de morte. Assim, o lixo é o grande nivelador. Tudo junto. Tudo no final. Tudo é resto. Tudo vira lixo.

O lixo é o destino do destino. Lixo. Destino de todos os destinos.

 

[1] James Hillman, Entre Vistas: conversas com Laura Pozzo sobre psicoterapia, biografia, amor, alma, sonhos, trabalho, imaginação e o estado da cultura, tradução de Lucia Rosenberg e Gustavo Barcellos, São Paulo: Summus Editora, 1989, p. 123.